Projeto de Lei nº 583/2007- Dispõe sobre a proibição de
revista íntima de funcionários nos locais de trabalho e trata da revista íntima
em ambientes prisionais
Ighor Rafael de Jorge
O Projeto de Lei do Senado nº 583/2007
(Projeto de Lei da Câmara nº 2, de 2011) da Deputada Alice Portugal (PC do
B/BA) tem por finalidade proibir a revista íntima
a funcionárias de órgãos públicos e entidades da administração pública direta e
indireta. Ainda que a CLT traga tal vedação
em seu art. 373-A[1] (mesmo fundamento do projeto), as funcionárias
de órgãos e entidades da administração pública (direta e indireta), não são
protegidas pela restrição (apenas celetistas). O PLC nº 2, de 2011 estabelece, em caso de descumprimento, o
pagamento de multa e ainda regula a revista íntima no ambiente prisional
(deverá ser feito por servidoras do sexo feminino).
Atualmente o Projeto de Lei tramita no Senado e
depende de votação da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) e do
Plenário da Casa, já tendo parecer aprovado pela Comissão de direitos humanos e
legislação participativa (CDH).
No
tema da revista íntima se percebe a colisão entre dois direitos fundamentais: o
direito de propriedade (art. 5º, XXII, CF/88) e o direito à intimidade e à vida
privada, que declara “invioláveis a
intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o
direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”
(art. 5º, X, CF/88).
É do direito de propriedade que decorre o
direito do empregador em proteger o seu patrimônio. A propriedade, enquanto
garantia constitucional, assegura a proteção das posições privadas já
existentes, bem como dos direitos a serem ocasionalmente constituídos. É válido
lembrar, por outro lado, que o próprio artigo 5º estabelece a função social da
propriedade, o que sinaliza não ser mais aceitável um direito de propriedade
pleno, sem qualquer restrição (o que é típico do liberalismo, como pode ser
observado nas Constituições de 1824 e 1891).
Somado ao direito de zelar pelo patrimônio, a CLT confere ao
empregador um poder diretivo (art. 2º: “considera-se
empregador a empresa, individual ou coletiva, que assumindo os riscos da atividade
econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço”),
sendo uma das espécies desse poder o poder fiscalizatório, que é definido por
Mauricio Godinho Delgado como “o conjunto
de prerrogativas dirigidas a propiciar o acompanhamento contínuo da prestação
de trabalho e a própria vigilância efetivada ao longo do espaço interno.”[2] Delgado pondera, todavia, existirem
limites ao poder fiscalizatório, sendo as regras e princípios gerais da
Constituição “uma fronteira inegável ao
exercício das funções fiscalizatórias e de controle no contexto empregatício,
colocando na franca ilegalidade medidas que venham agredir ou cercear a
liberdade e dignidade da pessoa que trabalha empregaticiamente no país.”[3]
No pólo oposto ao poder diretivo está a subordinação,
característica do contrato de trabalho que consiste no compromisso assumido
pelo empregado em acatar as ordens emanadas do empregador quanto à forma pela
qual realizará a prestação de serviço. A subordinação deve ser encarada no
Direito do Trabalho sob um prisma objetivo, se relacionando sobre o modo de
realização da prestação e não como uma sujeição pessoal do trabalhador.
Ao
se violar o direito à intimidade do trabalhador, o fundamento da dignidade da
pessoa humana também estará sendo ofendido. Alexandre de Moraes defende que a
dignidade da pessoa humana constitui-se como um valor elementar, que deve ser
observado por todo estatuto jurídico “de
modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício
dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que
merecem todas as pessoas enquanto seres humanos”.[4]
Dessa forma, por conta de atingir a dignidade do trabalhador, a revista íntima
tem sido alvo de críticas[5]
por grande parte da doutrina e da Jurisprudência:
O direito fundamental à
privacidade é um dos componentes da dignidade humana, sendo a intromissão na
vida privada uma situação excepcional que deve vir precedida de um fundamento
de interesse público, a exemplo da liberdade da informação. Não é possível a
violação da intimidade para fins de atender a interesse privado ou meramente
econômico.[6]
Além de atingir a dignidade e intimidade do trabalhador, a revista
íntima ainda acaba por ignorar o princípio da igualdade (art. 5º, caput, CF/88), pois não obstante a
segurança pública ser monopólio do Estado (art. 144, CF/88), ao empregador é
facultado assumir uma função que é tipicamente da polícia (o empregador atuaria
uma espécie de “polícia privada”), privilégio que nenhuma outra pessoa possui.
Em caso de colisão de direitos, levando-se em conta que a
Constituição brasileira não aderiu expressamente a determinado direito, pode-se
optar por um deles realizando um juízo de ponderação, não podendo, dessa forma,
um direito de caráter patrimonial prevalecer sobre um direito que diga respeito
à pessoa humana.
Tamanho é o
prejuízo à integridade moral do trabalhador que, não obstante o art. 373-A,
inciso VI da CLT, instituído pela Lei nº 9.799/99 vedar “proceder o empregador ou preposto a revistas íntimas nas empregadas ou
funcionárias”, a interpretação corrente na doutrina e na jurisprudência é
de que a proteção se estende aos trabalhadores do sexo masculino.
Vale mencionar
que a Lei nº 9.799/99 foi uma política que visava facilitar o acesso da mulher
no mercado de trabalho, o que encontra amparo, entre outros aspectos, no princípio
da proteção, vigente no Direito do Trabalho, que tem por finalidade minorar o
desequilíbrio na relação de trabalho, tutelando o trabalhador, a parte mais
vulnerável (hipossuficiente). No caso em tela a mulher é a parte mais
prejudicada.
A revista íntima
pode ser considerada uma odiosa forma de explicitar preconceitos, tendo esse
“direito” do empregador em revistar o empregado, raízes na escravidão. Na maior
parte dos casos, é dirigida a trabalhadores que ocupam postos de trabalho
hierarquicamente inferiores (não se observa, por exemplo, casos de revistas
íntimas realizadas em pessoas que ocupam cargos executivos), postos que
usualmente são ocupados por mulheres e negros, maiores vítimas das
desigualdades sociais. Como o salário possui natureza alimentar, muitos
trabalhadores se veem obrigados a suportar por anos ofensas a sua dignidade
moral.
Considerando que o contrato de trabalho é uma relação baseada na
confiança, tal prática provoca ainda mais espanto, dada a sua incoerência,
sobretudo quando o empregador possui acesso, por força do avanço tecnológico, a
outros meios para garantir a preservação de seu patrimônio que não sejam
invasivos à intimidade do trabalhador (detector de metais e o circuito interno
de filmagem, por exemplo). Até mesmo grandes grupos empresariais ainda relutam
em adotar outros métodos, provavelmente por serem mais onerosos
financeiramente.
Em suma, com as garantias da Constituição de 1988, não se pode
aceitar a revista íntima como prática, não sendo razoável não se estender a
proteção aos servidores da administração pública (sobretudo porque o Estado
deveria ser o primeiro a não se valer de tal instrumento). A dignidade do trabalhador não pode ser
mitigada por conta de mera comodidade ou vantagem econômica para o empregador,
que, ainda que possua um poder diretivo, respaldado pelo direito de
propriedade, não é um poder ilimitado (direitos relativos à personalidade do
trabalhador devem prevalecer sobre direitos patrimoniais), devendo o empregado
ser protegido, já que é a parte que está em posição mais desvantajosa na
relação por contar somente com sua força de trabalho.
[1] A
interpretação atual do artigo da CLT inclui no âmbito de proteção trabalhadores
do sexo masculino.
[2]
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 11ª ed. São Paulo: LTr,
2012, p. 662.
[3] Idem, p. 664.
[4]
MORAES, Alexandre de. Curso de Direito Constitucional. 18ª ed. São Paulo:
Atlas, 2005 p. 16
[5]
Ainda que a maior parte da jurisprudência venha se pronunciando contra a
revista íntima, é admitida por alguns em casos excepcionais (caso de
trabalhadores de indústria que atua na produção de medicamentos controlados: “Controle
na saída de remédio justifica revista”- Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-jan-11/controle-comercio-remedio-justifica-revista-empregado-cueca.
[6] TST-RR-188400-62.2006.5.09.0664 –
Disponível em http://www.jusbrasil.com.br/diarios/39526369/tst-13-08-2012-pg-192
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