segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Projeto de Lei nº 583/2007- Dispõe sobre a proibição de revista íntima de funcionários nos locais de trabalho e trata da revista íntima em ambientes prisionais --- Ighor Rafael de Jorge


Projeto de Lei nº 583/2007- Dispõe sobre a proibição de revista íntima de funcionários nos locais de trabalho e trata da revista íntima em ambientes prisionais

                                                                                                            Ighor Rafael de Jorge

 

 O Projeto de Lei do Senado nº 583/2007 (Projeto de Lei da Câmara nº 2, de 2011) da Deputada Alice Portugal (PC do B/BA) tem por finalidade proibir a revista íntima a funcionárias de órgãos públicos e entidades da administração pública direta e indireta. Ainda que a CLT traga tal vedação em seu art. 373-A[1] (mesmo fundamento do projeto), as funcionárias de órgãos e entidades da administração pública (direta e indireta), não são protegidas pela restrição (apenas celetistas). O PLC nº 2, de 2011 estabelece, em caso de descumprimento, o pagamento de multa e ainda regula a revista íntima no ambiente prisional (deverá ser feito por servidoras do sexo feminino).

Atualmente o Projeto de Lei tramita no Senado e depende de votação da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) e do Plenário da Casa, já tendo parecer aprovado pela Comissão de direitos humanos e legislação participativa (CDH).

No tema da revista íntima se percebe a colisão entre dois direitos fundamentais: o direito de propriedade (art. 5º, XXII, CF/88) e o direito à intimidade e à vida privada, que declara “invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (art. 5º, X, CF/88).

 É do direito de propriedade que decorre o direito do empregador em proteger o seu patrimônio. A propriedade, enquanto garantia constitucional, assegura a proteção das posições privadas já existentes, bem como dos direitos a serem ocasionalmente constituídos. É válido lembrar, por outro lado, que o próprio artigo 5º estabelece a função social da propriedade, o que sinaliza não ser mais aceitável um direito de propriedade pleno, sem qualquer restrição (o que é típico do liberalismo, como pode ser observado nas Constituições de 1824 e 1891).

Somado ao direito de zelar pelo patrimônio, a CLT confere ao empregador um poder diretivo (art. 2º: “considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço”), sendo uma das espécies desse poder o poder fiscalizatório, que é definido por Mauricio Godinho Delgado como “o conjunto de prerrogativas dirigidas a propiciar o acompanhamento contínuo da prestação de trabalho e a própria vigilância efetivada ao longo do espaço interno.”[2] Delgado pondera, todavia, existirem limites ao poder fiscalizatório, sendo as regras e princípios gerais da Constituição “uma fronteira inegável ao exercício das funções fiscalizatórias e de controle no contexto empregatício, colocando na franca ilegalidade medidas que venham agredir ou cercear a liberdade e dignidade da pessoa que trabalha empregaticiamente no país.”[3]

No pólo oposto ao poder diretivo está a subordinação, característica do contrato de trabalho que consiste no compromisso assumido pelo empregado em acatar as ordens emanadas do empregador quanto à forma pela qual realizará a prestação de serviço. A subordinação deve ser encarada no Direito do Trabalho sob um prisma objetivo, se relacionando sobre o modo de realização da prestação e não como uma sujeição pessoal do trabalhador.

Ao se violar o direito à intimidade do trabalhador, o fundamento da dignidade da pessoa humana também estará sendo ofendido. Alexandre de Moraes defende que a dignidade da pessoa humana constitui-se como um valor elementar, que deve ser observado por todo estatuto jurídico “de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos”.[4] Dessa forma, por conta de atingir a dignidade do trabalhador, a revista íntima tem sido alvo de críticas[5] por grande parte da doutrina e da Jurisprudência:

 

O direito fundamental à privacidade é um dos componentes da dignidade humana, sendo a intromissão na vida privada uma situação excepcional que deve vir precedida de um fundamento de interesse público, a exemplo da liberdade da informação. Não é possível a violação da intimidade para fins de atender a interesse privado ou meramente econômico.[6]
 

 

 

Além de atingir a dignidade e intimidade do trabalhador, a revista íntima ainda acaba por ignorar o princípio da igualdade (art. 5º, caput, CF/88), pois não obstante a segurança pública ser monopólio do Estado (art. 144, CF/88), ao empregador é facultado assumir uma função que é tipicamente da polícia (o empregador atuaria uma espécie de “polícia privada”), privilégio que nenhuma outra pessoa possui.

Em caso de colisão de direitos, levando-se em conta que a Constituição brasileira não aderiu expressamente a determinado direito, pode-se optar por um deles realizando um juízo de ponderação, não podendo, dessa forma, um direito de caráter patrimonial prevalecer sobre um direito que diga respeito à pessoa humana.

           Tamanho é o prejuízo à integridade moral do trabalhador que, não obstante o art. 373-A, inciso VI da CLT, instituído pela Lei nº 9.799/99 vedar “proceder o empregador ou preposto a revistas íntimas nas empregadas ou funcionárias”, a interpretação corrente na doutrina e na jurisprudência é de que a proteção se estende aos trabalhadores do sexo masculino.

           Vale mencionar que a Lei nº 9.799/99 foi uma política que visava facilitar o acesso da mulher no mercado de trabalho, o que encontra amparo, entre outros aspectos, no princípio da proteção, vigente no Direito do Trabalho, que tem por finalidade minorar o desequilíbrio na relação de trabalho, tutelando o trabalhador, a parte mais vulnerável (hipossuficiente). No caso em tela a mulher é a parte mais prejudicada.

            A revista íntima pode ser considerada uma odiosa forma de explicitar preconceitos, tendo esse “direito” do empregador em revistar o empregado, raízes na escravidão. Na maior parte dos casos, é dirigida a trabalhadores que ocupam postos de trabalho hierarquicamente inferiores (não se observa, por exemplo, casos de revistas íntimas realizadas em pessoas que ocupam cargos executivos), postos que usualmente são ocupados por mulheres e negros, maiores vítimas das desigualdades sociais. Como o salário possui natureza alimentar, muitos trabalhadores se veem obrigados a suportar por anos ofensas a sua dignidade moral.

Considerando que o contrato de trabalho é uma relação baseada na confiança, tal prática provoca ainda mais espanto, dada a sua incoerência, sobretudo quando o empregador possui acesso, por força do avanço tecnológico, a outros meios para garantir a preservação de seu patrimônio que não sejam invasivos à intimidade do trabalhador (detector de metais e o circuito interno de filmagem, por exemplo). Até mesmo grandes grupos empresariais ainda relutam em adotar outros métodos, provavelmente por serem mais onerosos financeiramente.

Em suma, com as garantias da Constituição de 1988, não se pode aceitar a revista íntima como prática, não sendo razoável não se estender a proteção aos servidores da administração pública (sobretudo porque o Estado deveria ser o primeiro a não se valer de tal instrumento).  A dignidade do trabalhador não pode ser mitigada por conta de mera comodidade ou vantagem econômica para o empregador, que, ainda que possua um poder diretivo, respaldado pelo direito de propriedade, não é um poder ilimitado (direitos relativos à personalidade do trabalhador devem prevalecer sobre direitos patrimoniais), devendo o empregado ser protegido, já que é a parte que está em posição mais desvantajosa na relação por contar somente com sua força de trabalho.

 

 

 

 



[1] A interpretação atual do artigo da CLT inclui no âmbito de proteção trabalhadores do sexo masculino.
[2] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 11ª ed. São Paulo: LTr, 2012, p. 662.
[3] Idem, p. 664.
[4] MORAES, Alexandre de. Curso de Direito Constitucional. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2005 p. 16
[5] Ainda que a maior parte da jurisprudência venha se pronunciando contra a revista íntima, é admitida por alguns em casos excepcionais (caso de trabalhadores de indústria que atua na produção de medicamentos controlados: “Controle na saída de remédio justifica revista”- Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-jan-11/controle-comercio-remedio-justifica-revista-empregado-cueca.
[6] TST-RR-188400-62.2006.5.09.0664 – Disponível em http://www.jusbrasil.com.br/diarios/39526369/tst-13-08-2012-pg-192

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